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O normal e o patológico nas vivências espirituais
Autor: Fabiano Deliberalli (23/7/2010)A partir de uma visita que realizei em um Hospital destinado a tratamento de dependentes químicos e doentes mentais, tive a oportunidade de entrevistar um interno que apresentava um discurso, no qual vários elementos que podemos classificar como "delírio religioso" (Dalgalarrondo, 2008, p.158), ou "delírio místico" estavam presentes. Começei a partir desta experiência, pensar sobre a presença marcante da religião e da espiritualidade na experiência cotidiana de grande número de indivíduos, principalmente em nosso país.
A psicologia como parte das ciências da saúde depara-se a todo o instante em sua prática, com questões sobre o normal e o patológico. Mas de fato, até que ponto esta divisão está clara para a psicologia, principalmente quando há o envolvimento de questões relacionadas ao, historicamente controverso, tema das vivências espirituais?
É fato que, frente ao fenômeno das vivências espirituais, as mesmas experiências, dependendo da abordagem, podem ser chamadas de "delírio", "fantasia", "fenômeno subjetivo", "experiência interna", "vivência espiritual" etc. Aqui, quando utilizo os termos "vivência espiritual", "experiência espiritual", ou "transpessoal", faço referência as características e conceitos relativos à busca ou vivência direta da experiência do supra-sensível ou sagrado, podendo ou não vincular-se a uma religião.
Estes tipos de vivência contêm um grau de subjetividade e afeto que não pode ser facilmente expressada pelo pensamento lógico ou compartilhada sem o uso de subterfúgios metafóricos, sendo assim, quando transposta em linguagem, freqüentemente dá margem às interpretações que podem ser extremamente controversas e até patologizantes. Por exemplo, uma pessoa religiosa, independente da sua convicção doutrinária, pode ter uma visão subjetiva que influenciou seu modo de vida e atuação no mundo.
Para algumas abordagens psicológicas, isso pode ser visto como uma espécie de alienação, portanto enquadrada dentro de um viés psicopatológico. Mas esta pessoa, por outro lado, pode ser muito saudável, dentro de parâmetros considerados normais em nosso modo de vida social. Penso aqui em um indivíduo que independente de suas vivências e crenças, atua em sua vida trabalhando, estudando, se relacionando de forma satisfatória para si e o outro, sendo produtivo e com perspectivas de desenvolvimento e futuro. E aqui podemos nos perguntar, como diferenciar este ser de outro que não tem as mesmas vivências? Ou seja, são as experiências espirituais de um indivíduo são dados comprobatórios de normalidade ou patologia, ou mesmo estão relacionadas a estes rótulos indissociavelmente?
Maslow estudou casos de indivíduos que ele denominou de "auto-atualizadores", que eram:
os que haviam alcançado um nível de funcionamento melhor, mais eficiente e saudável do que o homem e a mulher comuns. Maslow argumentava que era mais exato generalizar sobre a natureza humana estudando os melhores exemplos que pudesse encontrar, do que catalogando os problemas e falhas dos indivíduos comuns ou neuróticos (Fadiman & Frager, 1986, p.263).
A partir de suas pesquisas com inúmeros indivíduos e com o foco, de buscar o mais saudável no ser humano, percebeu inúmeras características comuns a estas pessoas. Uma dessas características é o que ele denominou de "experiências culminantes". Conforme nos mostra Fadiman & Frager (1986):
Maslow percebeu que alguns indivíduos auto-atualizados tendem a ter muitas experiências culminantes, enquanto outros raramente às têm, se as tiverem. Chegou a distinguir entre auto-atualizadores psicologicamente saudáveis, seres humanos produtivos, com pouca ou nenhuma experiência de transcendência, e outros para os quais o vivenciar transcendente era importante ou até mesmo central. (...) Maslow escreveu que auto-atualizadores que transcendem são na maioria das vezes mais conscientes do sagrado de todas as coisas, da dimensão do transcendente da vida, no meio das atividades cotidianas. Suas experiências culminantes ou místicas, tendem a ser valorizadas como os aspectos mais importantes de suas vidas (p. 267).
Na área de saúde mental existem por vezes, diversos preconceitos, opiniões e interesses, muitas vezes exigidos pelo modelo cientifico positivista, que dificultam uma visão mais humana de alguns fenômenos de ocorrência na psicodinâmica do sujeito. Com isso, percebo que há a necessidade de uma discussão aberta sobre o assunto da possível "despatologização" destes fenômenos, na busca de eventuais aspectos humanos, positivos e saudáveis eventualmente existentes nestas vivências.
Em Camon (2008), há um posicionamento semelhante, que diz que: "Talvez a idiossincrasia a que se atribuam diferenças existentes entre diversas correntes do pensamento contemporâneo nada mais é do que posicionamentos meramente preconceituosos" (p. 27). E continua: "A psicologia ao se aproximar das manifestações religiosas, está, na realidade, buscando também um aprumo para se fazer de fato uma ciência que compreenda as pessoas em sua verdadeira humanidade" (ibidem, p. 29).
A ciência moderna nasce como uma proposta de objetivar o conhecimento humano, questionando a explicação Aristotélica da ordem de natureza e, ao mesmo tempo, procurando formular essas mesmas leis com uma base racional (Schultz e Schultz, 2005). A psicologia moderna científica tem bases mecanicistas e positivistas, características da Idade Moderna, onde o conhecimento humano se limita somente aos fenômenos e fatos naturais observáveis de maneira objetiva, por meio dos denominados métodos científicos. De acordo com Schultz e Schultz (2005):
Em meados do século XIX, 200 anos após a morte de Descartes, terminava o longo período da psicologia pré-científica. Nessa época, o pensamento filosófico europeu foi impregnado por um novo espírito: o positivismo. O conceito e o termo formam a base do trabalho do filósofo francês Auguste Comte (...). A fim de controlar melhor esta tarefa ambiciosa, decidiu limitar o trabalho a fatos inquestionáveis, ou seja, aqueles determinados exclusivamente por métodos científicos. Dessa maneira, a visão positivista referia-se a um sistema baseado exclusivamente nos fatos observáveis objetivamente e indiscutíveis (p. 39).
A psicologia como ciência e depois como disciplina acadêmica formal, utilizava os métodos das ciências naturais, principalmente a fisiologia. Por exemplo, Wundt, considerado fundador da Psicologia, estudava a consciência pelo método da análise ou da redução, tentando eliminar a subjetividade das sensações para não sofrer nenhum tipo de influência de interpretações pessoais. Tanto é que "a contribuição de Wundt para a fundação da psicologia moderna é devida não tanto a uma única descoberta cientifica quanto à promoção vigorosa da experimentação sistemática realizada por ele." (Schultz e Schultz, 2005, p. 78)
Nesta mesma época, no campo da saúde mental (medicina, psicologia, psiquiatria e psicanálise), a psicopatologia ainda ensaiava seus primeiros passos no meio científico e acadêmico. Como psicopatologia foram considerados "os sofrimentos da alma e, em termos mais amplos, os distúrbios do psiquismo humano, a partir de uma distinção ou deslizamento dinâmico entre o normal e o patológico" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 617). Segundo Sonenreich (1979): "Ribot (1881) parece ser o primeiro a falar de Psicologia Patológica. A primeira cátedra desta disciplina é de Dumas, em 1905. Psicologia Patológica aparece como o que seria mais tarde a Psiquiatria" (p. 3).
Cazeto (2001) nos auxilia a esclarecer estas informações históricas anteriores, pois: "Foi para Ribot (1839-?), que não era médico, mas filósofo, que pela primeira vez foi criada uma cadeira de psicologia no prestigiado Collège de France." (p. 251) Sonenreich e Bassit (1979) ainda nos instrui, que Jaspers em 1911 escreveu um tratado utilizado durante muito tempo, como base nos cursos de psicopatologia e neste, quando elabora suas definições do que seria psicopatologia, diz que:
(...) entre Psicopatologia e Psicologia não existem limites precisos e muitas questões, são tratadas igualmente por psicólogos e psicopatologistas... As duas ciências não estão, em princípio, separadas... A Psicopatologia investiga muitos fatos cujos correspondentes normais ainda não foram estabelecidos pela Psicologia (Jaspers apud Sonenreich e Bassit, p. 3).
Ampliando a discussão frente à controvérsia do que seria próprio da Psicologia ou da Psiquiatria, sem nos alongarmos demasiadamente nesta questão, que não é o foco de nossa pesquisa, podemos apenas citar que, segundo Sonenreich e Bassit (1979), em dado momento, uma visão corrente era a de que "a Psicologia seria um método de relacionar os aspectos da conduta entre si. Significaria compreender condutas patológicas em função de outras condutas, normais ou anormais" (p.12). E para a psiquiatria:
É em geral diante de um comportamento, diferente, anormal, que se coloca o problema da doença mental. Embora seja óbvio que nem toda a manifestação psíquica anormal possa ser qualificada ou concebida como psicopatológica, o psiquiatra é solicitado, pelo menos quando a manifestação psíquica anormal perturba, incomoda a sociedade ou o próprio indivíduo (ibidem, p.27).
Claro está o fato de que o termo "Psicopatologia não tem, em todos os discursos, a mesma significação" (Nogueira Filho, 2001), como o próprio Sonenreich deixa bem claro em seus escritos. Portanto, estas citações nos valem apenas para mantermos presente a perspectiva de que sempre houve uma controvérsia histórica sobre a ciência aplicada ao estudo da consciência e da subjetividade, especificamente quando se trata da classificação de normal e patológico.
Especialmente quando se trata da psicologia, pode nos auxiliar ter em mente algumas perspectivas, como a de Thomas Kuhn, onde "o estágio de desenvolvimento da ciência, quando ainda se encontra dividida em escolas de pensamento, foi denominado pré-paradigmático" (Schultz e Schultz, 2005, p. 19). E no caso:
A psicologia ainda não atingiu o estágio paradigmático. Ao longo de toda a história da psicologia, os cientistas e profissionais vêm buscando, adotando e rejeitando diversas definições relacionadas com a área. Não houve uma única escola ou uma única visão capaz de unificar as diversas posições (Ibidem, p. 20).
Sendo assim, podemos questionar, quem de fato estaria habilitado para definir claramente conceitos como normal e anormal, utilizados historicamente na disciplina da Psicopatologia, como citados acima, para avaliar seu objeto de estudo? Sonenreich e Bassit (1979) na introdução de seu livro, intitulada de "Notas de leitura para uma Psicopatologia", acredita que:
As relações entre Psicopatologia (ciência, discurso) e o psiquismo alterado ou doente, podem ser encaradas, como as relações entre qualquer ciência e seu objeto. O objeto é (postulamos) uma realidade; a ciência é outra realidade (...). Falamos de memória, inteligência, como "objetos de estudo". Mas por que inventamos tais conceitos? O que nos leva a considerá-los como objetos? Mesmo se eles existem como tal, a minha compreensão deles, as teorias que elaboro, os métodos que uso para pensá-los, são "meus" instrumentos (...). A ciência tem suas próprias regras, diferentes daquelas do objeto que ela quer documentar, significar. Às vezes nem corresponde às realidades intrísecas (p. 1).
Borges (2008) nos dá uma boa perspectiva sobre a relação deste assunto, com o tema aqui abordado, quando se trata especificamente da Psicologia:
Em um século e meio de existência a psicologia teve que se deparar com um paradoxo inescapável: ao mesmo tempo em que para se afirmar enquanto campo do conhecimento científico viu-se obrigada a manter um posicionamento alinhado aos princípios da ciência positivista, não pôde também se afastar, ou pelo menos ignorar, o estudo do fenômeno religioso, que integra os processos subjetivos do desenvolvimento humano. Portanto, seria natural, que os principais precursores dessa nova ciência se debruçassem no estudo da religião partindo de um referencial distinto da teologia (...). Seu objeto de observação, diferentemente, estaria circunscrito no comportamento do homem religioso com todos os elementos afetivos, ideativos e expressivos (...). É partindo dessa posição que alguns expoentes que marcaram a história da psicologia no início ao decurso do último século, abordaram o fenômeno da experiência religiosa (p. 9).
Quando realizamos uma revisão bibliográfica, no campo da saúde mental, principalmente dentro da abordagem psicanalítica sobre psicopatologia, percebemos que esta última, bastante utilizada dentro da psicologia, é uma abordagem teórica que sempre privilegiou o estudo do patológico.
Há pelo menos três grandes correntes psicanalíticas desenvolvidas durante este mais de um século de pesquisa, desde Freud e seus primeiros elementos teóricos da disciplina, que hoje podemos denominar como:
(...) 1) psicologia do ego, originada da clássica teoria psicanalítica de Freud; 2) teoria das relações de objeto, originadas no trabalho de Melanie Klein e membros da "Escola Britânica", incluindo Fairbain, Winnicott e Balint; 3) psicologia do self, originada de Heinz Kohut e elaborada por muitos que contribuíram subsequentemente (...) (Gabbard, 2006, p. 35).
Tendo em vista, portanto, que hoje podemos nos referir a estas Psicanálises, com o intuito de ampliar as possibilidades da pesquisa, para enriquecê-la em conteúdo, já que os vários teóricos contribuíram de maneira substancial para a Psicologia.
Klautau & Sousa (2003) nos auxilia neste sentido, corroborando que:
Diante da multiplicidade dos caminhos abertos por Freud, coube a cada um dos psicanalistas pós-freudianos a escolha do aspecto a ser privilegiado na teorização de suas preocupações clínicas. Como resultado, diversas orientações teóricas emergiram privilegiando um registro distinto da herança freudiana, a ponto de hoje em dia não termos de modo estruturado uma única teoria que defina a psicanálise. Falamos sobre psicanálises, sobre a pluralidade de orientações que constituem seu campo. Por muito tempo esta diversidade foi considerada expressão de uma desordem que devia ser combatida pela filiação a uma escola que garantiria a legitimidade e a existência da psicanálise. A meu ver, é justamente esta diversidade que confere vida e confere a maior de todas as riquezas encontradas na psicanálise: a possibilidade de conversar, a partir de diversos olhares, em torno de um objeto comum (apud Bezerra Jr, 2007, p. 269).
Na pesquisa deste tema, buscando a isenção na busca do normal e patológico das vivências espirituais, torna-se necessário fugir das "polaridades desnecessárias - é edípico ou pré-edípico, conflito ou déficit, teoria clássica ou psicologia do self, redução de tensão ou busca de objeto" (Gabbard, 2006, p. 56), pois:
(...) a especificidade das vivências religiosas mesmo nos que se denominam ateus e tantos outros pensadores originais, de Bion a Lacan, reconheceram na religiosidade profunda sua potencialidade especial de sabedoria. Enfim, a psicanálise nas últimas décadas tem-se aberto cada vez mais para a originalidade das experiências humanas com o sagrado (Dalgalarrondo, 2008, p. 72).
Portanto creio que a perspectiva da psicanálise psicodinâmica, defendida por alguns teóricos, como Gabbard (2006), que pondera que: "Não seria possível tanto o edípico quanto o não-edípico, o conflito e o déficit serem relevantes para a compreensão de um paciente em particular? É claro que sim" (p. 56). E mesmo sabendo que esta perspectiva "exija uma maior amplitude de conhecimento, ela permite uma compreensão mais rica dos pacientes e de sua psicopatologia" (ibidem, p. 57).
Japiassu (2009), referindo-se a utilização da Psicanálise, esclarece que:
Entre os debates técnicos ou teóricos mais importantes, destacou-se o da necessidade de se manter ou não certa ortodoxia, vale dizer uma obrigatória referência a Freud. Não se trata apenas de uma reverência ao pai fundador ou de uma revolta contra sua onipotência. Trata-se muito mais de um teórico "retorno a Freud", revalorizando e aprofundando os aspectos fundamentais de sua teoria (...). A primeira ortodoxia consiste em conhecermos Freud, antes dele divergirmos: sem nenhuma submissão, devemos nos situar nele, antes de nos situar depois dele (p. 36).
Portanto, na busca da compreensão da psicodinâmica e estrutura do indivíduo, podemos nos utilizar de propostas como as de Jean Bergeret, autor da psicanálise e que estudou profundamente o normal e o patológico nas estruturas de personalidade. Nas teorias das relações de objeto, vemos na figura de Winnicott, conceitos sobre a constituição do self, ou mesmo construções originais como a de "espaço potencial", que certamente contribuem para nosso debate, ao nos permitir um olhar da constituição subjetiva do ser nas fases pré-edípicas e suas possibilidades normais e patológicas.
Como contraponto a esta posição apresentada acima, há a proposta da Psicologia Transpessoal. Maslow, em 1968, publica o livro "Introdução a Psicologia do ser", onde escreve na introdução, algo que é considerado como o anúncio da Psicologia Transpessoal. Ele escreve que:
Devo também dizer que considero que a Psicologia Humanista, ou Terceira Força da Psicologia, apenas transitória, uma preparação para uma Quarta Psicologia ainda "mais elevada", transpessoal (...). Sem o transcendente e o transpessoal, ficamos doentes e niilistas, ou então vazios de esperança e apáticos. Necessitamos de algo "maior do que somos", que seja respeitado por nós próprios e a que nos entreguemos num novo sentido, naturalista, empírico, não-eclesiástico (...) (Maslow, 1968, p. 12).
E um dos objetivos desta proposta é exatamente o de estabelecer um diálogo entre as abordagens que privilegiam o psicopatológico e, levando estas abordagens em conta, verificar a possibilidade do "normal" dentro das vivências espirituais. Os autores da psicanálise nos servem de reflexão, base e contraponto, para a ampliação do tema, dentro da proposta da Psicologia Transpessoal, que busca compreender o fenômeno espiritual, dentro de uma ótica mais integradora, sem desconsiderar as possibilidades psicopatológicas, mas também considerando a possibilidade de saúde, dentro das vivências espirituais. Segundo Tabone (2003), "a Psicologia Transpessoal se situa como um "movimento" no campo da Psicologia, que utiliza o conhecimento de várias disciplinas e converge para uma síntese progressiva de dados sobre a consciência humana" (p. 28).
Dentre os teóricos enquadrados nesta abordagem, podemos citar principalmente Stanislav Grof e Ken Wilber, pioneiros e fundadores dos estudos transpessoais. O primeiro, psiquiatra com formação sólida em psicanálise, sendo estudioso de longa data sobre as possibilidades das vivências espirituais, de maneira sistematizada, nos fornece alguns sólidos parâmetros teóricos para reflexão e base. E com o último e seu modelo denominado de "Pluralismo Metodológico Integral", há a possibilidades de ampliar a percepção das experiências espirituais, buscando o entendimento equânime do que pode ser normal e patológico. Já que esta é uma temática recorrente neste autor e que segundo Wilber (2006), quando tratamos de questões que contêm diferenças epistemológicas, como as que envolvem Psicologia e Espiritualidade, devemos considerar que:
(...) o Pluralismo Metodológico Integral é um modo de lidar com estas questões complexas. Explicitamente, ele abre espaço para as verdades pré-modernas, modernas e pós-modernas, em um modelo integral, não de conclusões, mas de perspectivas e metodologias (...). O Pluralismo Metodológico Integral pode reconstituir as verdades relevantes das tradições contemplativas, mas sem os sistemas metafísicos que não sobreviveram às críticas modernistas e pós-modernistas; elementos que, de qualquer maneira, como fica claro, são desnecessários para elas (p. 71-72).
Wilber (2007) em seus escritos, possibilita uma ampla reflexão sobre o que ele chama de "falácia pré/trans", onde discute as questões do podemos denominar de pré-egóico, ou pré-pessoal e do trans-egóico ou trans-pessoal. Ou seja, ele possibilita em sua metodologia e reflexões, um entendimento e um diálogo sobre as experiências espirituais e o que ele denomina de "confusão" entre estes estados. De sua perspectiva o que pode ocorrer é que:
Em qualquer sequência de desenvolvimento - pré-racional, depois racional, até transracional; subconsciente, em seguida, consciente, até o inconsciente coletivo; pré-verbal, depois verbal, até transverbal; pré-pessoal, depois pessoal, até transpessoal - os componentes "pré" e "trans" costumam ser confundidos, e essa confusão ocorre nos dois sentidos. Depois de confundi-las, alguns pesquisadores tomam todas as realidades transracionais e tentam reduzi-las a infantilismos pré-racionais (por exemplo, Freud), ao passo que outros tomam alguns elementos infantis pré-racionais e os elevam à glória transracional (por exemplo, Jung). Tanto esse reducionismo quanto essa elevação partem da mesma falácia do pré/trans (p. 75).
Desta forma, esta abordagem nos parece relevante para discussão pois podemos à partir desta formulação de Wilber, entender alguns pontos importantes no diálogo com os pensadores da psicanálise. Wilber (2006a) é por vezes contundente em suas colocações:
Se você não crê no Espírito, toma cada evento transracional e o reduz a impulsos pré-racionais e disparates pré-verbais, talvez alegando que ele seja regressivo, nada mais do que um resquício da vasta fusão dos primórdios do ser. Você é um ótimo reducionista, tem uma legião de nomes e segue sua vida feliz, sintetizando transracional em pré-racional. (...) Com esse truque, essa preguiça intelectual, todas as realidades transracionais são descartadas. Se, por um lado, você acredita no Espírito, e qualquer coisa não racional é espírito, então parece que todo o espasmo ou ferroada pré-racional - por mais infantil, regressivo, egoísta, irracional ou egocêntrico - é, de certa forma, profundamente espiritual ou religioso, e assim você prossegue reforçando as áreas em sua percepção que mais combatem a maturidade (p. 76).
E mais circunscrita às questões das vivências espirituais e suas patologias, Wilber possui um extenso estudo sobre a questão. Por exemplo, em seus estudos sobre as tradições espirituais e as correlações possíveis com os conhecimentos da moderna psicologia, ele afirma que:
(...) uma coisa é certa: as grandes culturas tradicionais, por toda a sua sabedoria, não têm nada igual a ela. (...) uma compreensão da psicodinâmica, e modos de curá-la, é uma contribuição exclusiva da psicologia ocidental moderna (...). Conseqüentemente, mesmo meditadores e mestres espirituais avançados costumam ser assombrados pela psicopatologia, pois suas sombras os perseguem até a Iluminação, deixando um rastro de destruição pelo caminho (ibidem, p.157).
Wilber (2006b), resume algo deste seu pensamento, quando fala que "Se você não favorece Freud, será difícil chegar à Buda" (p. 187). E é esta perspectiva que motiva este artigo e as possibilidades de investigação e discussão clínica do assunto e dá margem para a relação entre alguns pontos da psicanálise e da Transpessoal.
Especificamente, quanto à utilização de teóricos ligados à abordagem Transpessoal, interligados à pesquisa do normal e patológico, entendemos que:
Experiências Transpessoais têm sido aspectos importantes da vida humana em toda a história. A maioria das culturas e sociedades foi profundamente religiosa; seu sistema de valores apoiou tais experiências e deu-lhes valor. A sociedade moderna ocidental tem-se mostrado menos aberta aos fenômenos transpessoais há algumas décadas, espaço de tempo na realidade muito pequeno em relação a toda a história do Ocidente. Deveríamos lembrar que a dimensão transpessoal foi de importância central na maioria das sociedades através da história. Para um estudante da personalidade, seria tão insensato negligenciar este setor da consciência como seria ignorar a psicopatologia. É um reflexo da imaturidade da Psicologia, e não de sua sofisticação. O fato dela ter dedicado maior esforço a compreensão da doença humana do que à transcendência humana (Fadiman, 1986, p. 284).
Portanto, cremos que esta linha de investigação e pesquisa dentro da área clínica pode ser muito produtiva e de grande importância, para o entendimento de como lidar com uma demanda crescente de indivíduos que possuem como foco de suas angústias e transtornos, questões relacionadas ao transcendente, espiritual ou religioso. Pensando também no número enorme de crenças "new age" espalhadas por todo o mundo, devemos perceber que inalienavelmente, esta perspectiva faz parte do ser humano e deve ser considerada em sua totalidade, com seus eventuais problemas e até psicopatologias associadas, mas também em suas possibilidades saudáveis. E deste modo, faz sentido que adotemos o que há de melhor na compreensão tanto dos aspectos normais, quanto dos patológicos frente a estas questões, com o intuito sempre de termos os melhores subsídios para o auxílio dos que nos procuram como profissionais, em buscam do entendimento de suas questões existenciais.
Fabiano Deliberalli
Psicólogo Clínico
Referências Bibliográficas
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Achei este artigo muito interessante e a mim muito pertinente, enquanto vivenciadora e futura pesquisadora das religiões de matriz africana. Por esse motivo o publiquei aqui em meu blog pessoal.
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